Caitlin Doughty tem quase meio milhão de seguidores no canal ‘Pergunte Para Uma Agente Funerária’, do YouTube Doughty, 33, vê pessoas mortas. O tempo todo. Não mortos como os do filme “O Sexto Sentido”, mas aqueles em carne e osso. Às vezes, também em cinzas.
Foi no primeiro emprego em um crematório, inclusive, que a norte-americana nascida no Havaí conheceu a morte de perto aos 23 anos –desta experiência surgiu o livro “Confissões do Crematório, Lições para Toda Vida” (Darkside, 2016), algo como “a fumaça entra nos seus olhos e outras lições do crematório” no título original.
Desde então, diz, vem fazendo da morte a sua vida.
Com visual que lembra o da personagem Mortícia Addams –e sem medo de posar com itens considerados macabros, como caixões, caveiras, esqueletos, foices–, Caitlin abriu há três anos uma agência funerária em Los Angeles, com uma proposta de velórios e enterros parecidos com os de antigamente. Desde 2011, também encabeça o coletivo A Ordem da Boa Morte (em inglês), no qual profissionais de diversas áreas –de psiquiatra forense a designer de joias feitas com cinzas– propõem, entre outras coisas, a quebra do silêncio em torno do tema.
Se o objetivo é expor diversos aspectos da morte, Caitlin adotou uma fórmula hoje conhecida para se fazer ouvir. Com uma linguagem extremamente direta, humor e algumas caras e bocas, além do domínio sobre um conteúdo inusitado, foi às redes sociais contar o que sabe. Funcionou: tem quase meio milhão de seguidores no YouTube, no canal “Pergunte para uma Agente Funerária“, no qual seu vídeo mais assistido é “fechando bocas no pós-morte” (1,1 milhão de visualizações).
“Evito revelar meu trabalho quando conheço pessoas novas. Não porque tenho vergonha, mas porque fazem pergunta atrás de pergunta. As pessoas ficam encantadas de encontrar alguém que sabe o que acontece nos bastidores da morte”
Caitlin Doughty, agente funerária
Aqui vão algumas dessas informações de bastidores. Há diversas formas para fechar a boca dos mortos: de uma pistola que “prega” o interior dos lábios à gengiva, passando pela costura e métodos mais naturais –caso de uma simples toalha enrolada, posicionada sob o pescoço, que serve de apoio ao maxilar.
Ela também conta que é preciso fechar os olhos dos mortos porque eles ficam com um aspecto leitoso. E que, como é muito difícil vestir um corpo, há quem corte a roupa e vista somente a parte da frente, como faria com um cobertor (ajeitando bem o tecido sobre o morto, para deixar o truque imperceptível).
A terceirização da morte
Entra aqui uma certa contradição. Ao mesmo tempo que existe curiosidade, muitas culturas do ocidente evitam ao máximo falar sobre o assunto e lidar diretamente com seus mortos.
Caitlin lembra que, há cem ou 150 anos, o cenário era bem diferente. Não havia hospitais, funerárias e abatedouros em todos os lugares, como hoje, “escondendo a morte”. As pessoas morriam em casa, onde também eram realizados os funerais, e os animais comidos pela família eram abatidos ali mesmo, no quintal. Tudo isso acabou, principalmente para quem vive em grandes cidades.
“É difícil falar sobre a morte porque ficou muito fácil evitá-la. Você pode chegar aos 40 anos sem nunca nem sequer ter ido a um velório ou visto um corpo. E, se nos fizeram acreditar que a morte é um mito, não há motivos para aceitar a realidade. Isso só torna as coisas piores quando a morte chega”
Caitlin Doughty, agente funerária
Segundo ela, a morte foi terceirizada: saiu das mãos dos familiares e ficou sob responsabilidade dos profissionais. Eles embalsamam, limpam, vestem, maquiam e acomodam os corpos seguindo seus próprios procedimentos e cronogramas.
A proposta de sua agência funerária é tornar esse processo mais natural. “Retomar os cuidados com nossos próprios mortos, não pagar para que alguém faça, é uma experiência de empoderamento. Ninguém deveria nos falar como ficar de luto, como nos comportar com o morto, como nos sentir”, afirmou em entrevista por email ao UOL.
Na prática, os serviços incluem de velório em casa à participação da família nos cuidados, sendo que nenhuma das opções de enterro ou cremação inclui embalsamento (para Caitlin, a técnica de preservação agride o ambiente e faz com que os mortos se pareçam com bonecos de cera).
“Os milhares de corpos com os quais lidei mudaram minha vida. Eles me aproximaram de minha própria mortalidade, assim como a mortalidade das pessoas que eu amo”, concluiu em uma palestra.
O começo do fim
A norte-americana começou a se interessar pelo assunto aos oito anos, quando viu uma criança caindo do parapeito de um shopping. Ela nunca teve a confirmação, mas deduziu que a vítima morreu.
“Isso me fez ficar aterrorizada. Quando ouvia uma sirene de ambulância, achava que estava vindo buscar meus pais ou avós, porque eles podiam morrer a qualquer momento”, lembra. “Ninguém falava abertamente comigo sobre esses medos. Parte do que faço hoje é criar uma conversa franca, para garantir que outras crianças possam viver em uma cultura na qual se fale sobre a morte.”
Ela se formou em história medieval na Universidade de Chicago. Mudou-se para a Califórnia, conseguiu emprego em um crematório e descobriu aí sua verdadeira vocação. Foi então estudar ciências mortuárias, quando aprendeu muito do que ensina hoje em seus vídeos. No currículo do Cypress College (Califórnia), onde graduou-se após três semestres, constam aulas de serviços funerários, embalsamento, arte restaurativa e leis. No Brasil, cursos equivalentes formam os chamados auxiliares de necropsia.
Caitlin diz não pensar muito em sua própria morte, pois está na faixa dos 30 anos e tem boa saúde (“até onde sei”, brinca). Ainda assim, fez um vídeo em que detalha exatamente o que gostaria que fizessem caso ela morra –e aconselha todos a fazerem algo parecido. Isso inclui instruções para uma amiga, já com acesso às senhas de Caitlin, para postar a notícia do falecimento em suas redes sociais.
“Não sabemos o impacto da internet na nossa concepção de morte. Se uma pessoa que conheci na universidade não está no Twitter nem no Facebook, é quase como se estivesse morta. Mas, se alguém que não está nas redes sociais é considerado morto, alguém que mantém um perfil ativo depois da morte continua vivo?” Para essa pergunta, a agente funerária ainda não encontrou respostas